Adoro o No Mínimo, site recheado de colunistas maravilhosos e seus pontos de vista polêmicos. Entre os textos que sempre leio, estão os de Carla Rodrigues - http://contemporanea.nominimo.com.br . Única mente feminina no meio de vários homens sabidos, Carla já escreveu textos super bacanas enfocando a ditadura da beleza e suas conseqüências. Como a Real Beleza é o foco deste Blog... aí está, com vocês: Carla Rodrigues!
Sobre o verão que ora termina
No quesito saudade não tem idade, a Campanha pela Real Beleza me lembrou do tempo em que beleza era atributo natural e não mercadoria de consumo. A propaganda da Dove trouxe de fato alguma novidade nas áridas areias quentes do verão carioca. Altas, baixas, gordinhas, morenas, louras: os corpos femininos de diferentes formatos que ilustram a campanha lembram às mulheres que ser bonita não é tentar ser como a top model da vez. Momento máximo de exibição de corpos na praia, o verão é a temporada da máxima vaidade. Com o slogan “tire a canga e vem curtir esse verão sem vergonha”, os comerciais de TV valorizavam a singularidade do corpo da mulher, em movimentos que expressam liberdade. A idéia é valorizar a beleza sem impor um padrão, na contramão do que costuma fazer a indústria de coméstico, muitas vezes apontada como a ponta mais visivelmente autoritária no que diz respeito às exigências de um corpo perfeito. Nesse momento, está no ar um comercial de shampoos e cremes de cabelo que valorizam os cachos naturais, novamente na contra-mão da maldita chapinha, que forma fileiras de candidatas à gueixas japonesas, com seus cabelos lisos e uniformizados.Não sei se é possível localizar exatamente quando isso começou, mas o fato é que beleza também virou produto de consumo. Antes atributo natural de homens e mulheres, hoje a beleza é um bem de consumo como outro qualquer, que faz da indústria da estética no Brasil uma das maiores do mundo (só perde para os EUA). Tudo bem, não há nada de errado em desejar ser (mais) bonita. O estranho é que haja padrões pré-determinados para tipo de beleza: cabelos, só lisos, peitos, só grandes, corpos, só magros, peles, só bronzeadas. A psicanálise compara o anseio feminino por se adaptar a um modelo de beleza ao fenômeno da histeria, que fez Freud inventar a psicanálise no final do século 19. O grande paradoxo é que essa necessidade de se enquadrar em algo pré-estabelecido aconteça justamente quando as mulheres estão comemorando os avanços e a liberdade, mas ao mesmo tempo se submetem a imposições que alteram seus corpos. Esse seria o principal traço em comum entre anorexia e histeria: a tentativa de controle do corpo da mulher, que antes se dava através da repressão a traços tidos como naturais – a obrigação de ser meiga, doce, delicada –hoje aparece na imposição estética de beleza e magreza. Controlar os corpos das mulheres é também moldar seus comportamentos. Um dos efeitos mais perversos é derrubar completamente a auto-estima e a capacidade de valorização das suas singularidades, individualidades, personalidades. Ter um corpo é ter uma identidade e alterá-lo para agradar aos outros – sobretudo, para atender a expectativas criadas pela própria indústria da estética – é uma forma de ser menos dona de si mesma. A anorexia, doença que se caracteriza pela recusa à alimentação por medo de engordar, e a bulimia, na qual a pessoa vomita aquilo que acabou de comer, atingem principalmente as mulheres: 90% dos pacientes são meninas entre 12 e 18 anos. As pacientes de anorexia ou bulimia que chegam aos consultórios de psicanálise associam o ideal de magreza e beleza com a perspectiva de sucesso e felicidade, como se não houvesse possibilidade de construção de um sujeito individual, subjetivo, rico de vida interior, inteligência, emoção ou sensibilidade. É claro que não se pode apostar que apenas a Campanha pela Real Beleza venha a dar conta de questões tão complicadas. Mas a novidade da Dove no verão de 2006 foi jogar com todos os símbolos de sensualidade feminina – corpos, cabelos, peles morenas, praia, biquinis – para valorizar a diferença e apostar na liberdade como caminho para realização. Que venham mais verões como esse.
Beleza e auto-confiança - uma virada
Como a loteria da genérica, a beleza é injusta e alguns são mais afortunados do que outros. Confiança requer auto-conhecimento, que incluir saber de suas forças e fraquezas. Em conferência recente, ouvi uma filósofa declarar durante o almoçoo que nunca faria cirurgia plástica e que nem mesmo tinge o cabelo. Mas, confessou, pagaria qualquer coisa por 15 pontos a mais no QI. Essa mulher, que não é insegura sobre sua inteligência, muito acima da média, apenas gostaria de ser mais esperta. Pedir às mulheres que se afirmem bonitas como são é pedir aos intelectuais se afirmem como gênios. Eles simplesmente sabem que não são.
O texto é inspirado na campanha da Dove sobre a “beleza real” e apresenta um ponto de vista bastante divergente do que jáescrevi aqui. Sempre fui defensora da idéia da beleza real, não adquirida, natural. Mas a autora, Virgínia Postel, conseguiu mudar em parte meu ponto de vista.
Ser auto-confiante é muito, mas muito mais complexo do que apenas gostar de ter os cabelos cacheados ao invés de lisos ou aceitar que seus seios são menores do que os “da moda”. Reconheço que na minha posição contrária à modificações corporais extremas há, sim, preconceito contra quem dá tanto valor à aparência.
Oprimidas pelo ideal de beleza
Os modelos de beleza estão desempenhando, nesse momento, um papel impositivo, e estabelecem um ideal de feminilidade fora do qual a existência é impossível. É desse tema que trata o trabalho “De menina a mulher, impasses da feminilidade na cultura contemporânea”, da psicanalista Silvia Alexim Nunes. Doutora em Saúde Coletiva pelo IMS/Uerj, Silvia traz para o papel a experiência de uma paciente adolescente, Clara, que tem como objetivo se tornar uma mulher de sucesso. Sua principal condição para que se sinta feliz é tornar esquelético o seu corpo roliço. O corpo aparece, para Clara, como obstáculo para que ela se considere bem-sucedida, ou seja, bonita, rica e desejável. Clara supõe, destaca Silvia, que “sucesso é felicidade e, mais ainda, que ambos dependem, principalmente para as mulheres, da beleza e do cultivo do corpo”. A preocupação com o corpo feminino não é, lembra a psicanalista, novidade. Quando, no final do século 19, as histéricas lotaram o consultório de Freud e o levaram a diagnosticar os sintomas do efeito da repressão da sociedade contra a mulher, estavam se rebelando contra as regras em vigor desde o século 17. Até então, as mulheres viviam oprimidas pelo que a medicina considerava as "características naturais" das mulheres, como a fragilidade, a timidez, a doçura, a sedução e a afetividade. Das histéricas até aqui, o que as mulheres conquistaram foi, além de voz, a possibilidade de construir modelos de feminilidade que melhor lhes conviesse. A imposição que já se deu a partir da ciência se reapresenta, agora, através da estética, que tem desempenhado o mesmo papel impositivo. Silicone, cirurgias estéticas, horas por semana dedicadas a exercícios e academias de ginástica, dietas constantes, tudo isso tomou o lugar da antiga concepção de que o corpo feminino é imperfeito e de que a feminilidade é símbolo da fragilidade humana. Quanto mais as mulheres experimentam seus corpos como inadequados, mais se sentem fracassadas, impotentes, descontentes com a sua condição de mulher. O controle sobre os corpos femininos, que Silvia identifica hoje na estética, está presente desde a constituição do modelo burguês que inaugurou a modernidade, e que fez das mulheres peças fundamentais para a reprodução de uma população saudável. Mãe e mulher, aqui, se confundem, em nome de um padrão de saúde e higiene. Neste aspecto, Silvia chama atenção para a quantidade de recursos que a medicina tem criado para sumir com os ciclos menstruais, que ela interpreta como forma de apagar as marcas da feminilidade. Quando a ciência ainda não sabia explicar o que significava o sangue da menstruação, considerava que aquele momento significava um estado de impureza da mulher. Depois, a medicina do século 19 passou a considerar os ciclos menstruais como momentos em que as mulheres ficariam mais suscetíveis emocionalmente, identificando o sangramento como sinal de fragilidade do corpo da mulher. Agora, Silvia alerta, o ideal da mulher liberada é atravessar o mês inteiro sem sinal perceptível de menstruação. Silvia localiza o problema na puberdade, que é quando a ditadura da estética começa a se impor, mas lembra que esse conflito pode aparecer em outros momentos da vida da mulher – ou até mesmo se perpetuar. Na outra ponta, o envelhecimento também oferece o mesmo risco de a mulher experimentar seu corpo como “inadequado, insuficiente, imperfeito, instalando, assim, um conflito com sua feminilidade.” A forma de escapar da opressão pela beleza é, segundo ela, estabelecer uma relação positiva com o corpo, vivendo a feminilidade como forma de prazer, e não de sofrimento. Para isso, a psicanálise, defende Silvia, tem muito a contribuir. A escapatória estaria em fugir da massificação e apostar na singularidade. Não chega a ser contraditório que o mesmo tempo em que é dada à mulher a liberdade de ser como bem entender seja também o momento em que novos rigores se impõem, acirrando o conflito entre seguir as regras externas ou apostar nas marcas individuais. Se o tão criticado individualismo serve para alguma coisa, é para colocar essa possibidade – a de que cada sujeito seja absolutamente único na multidão. Ou, como disse o filósofo italiano Antonio Negri, “o pós-moderno insere a diferença como recusa ao sistema compactado do capital”. Autora de “O corpo do diabo entre a cruz e a caldeirinha - Um estudo sobre a mulher, o masoquismo e a feminilidade”, Silvia apresentou seu trabalho sobre os efeitos perversos da estética numa mesa de debates realizada no evento Estados Gerais da Psicanálise, ocorrido no Rio no final de outubro, durante o qual Negri fez sua conferência.
20 de mar. de 2007
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Um comentário:
Muito bom o que escreveste! Concordo em gênero número e grau contigo, mas acho interessante lembrar que essa busca pelo corpo perfeito trouxe à tona a questão da saúde, mesmo que ligada à estética. Com a necessidade de dietas e exercícios, muitas mulheres (as que não são "viciadas" pelo corpo ideal do momento) estão vivendo de forma mais saudável, praticando exercícios e se alimentando melhor. Sou fã da campanha pela real beleza, mas não posso negar que perder alguns quilinhos ajuda, e muito, a subir escadarias por exemplo...
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