9 de abr. de 2007

A busca infinita


"A beleza agarra o tempo"

O conceito universal do belo entrou em declinio com a modernidade, diz o psicanalista Chaim KatzERNANE para o caderno Mais da Folha de São Paulo:

GUIMARÃES NETO DA REDAÇÃO

Mesmo com a profusão de padrões de beleza que acompanha a expansão dos mercados de moda e cosméticos, mesmo com campanhas politicamente corretas pela beleza "real", não é possível escapar à imposição midiática da "supermodelo" como exemplo a ser seguido. A opinião é do psicanalista Chaim Samuel Katz, doutor em comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro."São 20 ou 30 mulheres e homens que representam toda a beleza. Essa é uma construção que leva tempo", disse à Folha Katz, que organizou, com Daniel Kupermann e Viviane Mosé, o livro "Beleza, Feiúra e Psicanálise" (ed. Contra Capa).

FOLHA - O que mudou na idéia de beleza ao longo da história?
CHAIM KATZ - O que chamamos de "conceito" aparece primeiro na obra de Platão, que tenta mostrar que o conceito do belo só teria validade se correspondesse a uma essência no mundo das idéias.A busca platônica pelo belo, o bom e o justo fica na história do Ocidente, buscar o "belo em si".Com as grandes religiões, o belo situa-se sempre fora da experiência sensível. Seria o divino aquilo que o humano tem como referência e que tenta alcançar. Kant [1724-1804] realiza uma virada, dizendo que é impossível ter uma regra universal acerca do belo, pois todo juízo a respeito do belo é singular, determinado pelo gosto; não há mais uma determinação universalizante.Ao mesmo tempo, para Kant, apesar de o gosto ser singular, todo mundo tem faculdades semelhantes; a decisão sobre o que é belo se rompe com a universalização, mas as condições são universalizáveis.A mim interessou a descrição de Michel Foucault sobre Erasmo [c. 1466-1536]. No livro "Elogio da Loucura", de Erasmo, não há mais essa universalização. Para um homem bem velho que tem dinheiro, por exemplo, essas questões sobre o belo não aparecem. A loucura interna a cada um, sim, é universal.

FOLHA - Que paralelo podemos fazer entre essas formulações filosóficas e a psicologia?
KATZ - Diante da afirmação kantiana há os trabalhos dos românticos, como Fichte [1762-1814] e Schelling [1775-1854], que enfatizam as experiências subjetivas sobre a beleza.A decadência física e a doença passam a ser respeitadas como uma beleza do sujeito que corresponde a um lado "sombrio", uma beleza que é alegre, mas não feliz.

FOLHA - E qual o papel do belo na arte moderna?
KATZ - O que se chama de arte moderna não busca mais estabelecer o belo, mas expandir as experiências reais. Um homem como Picasso, digamos, que teve seu período belo, em que ilumina situações -por exemplo em 1900, 1905-, depois vai procurar expressar virtualidades que não estão visíveis aos olhos, a não ser quando o artista as mostra. O belo, como conceito, já não tem a mesma eficácia.

FOLHA - O que antes era uma relação de interpretação psicológica e sensação fica de lado em favor de uma comunicação mais lógica?
KATZ - Walter Benjamin [1892-1940] ajuda a compreender a contemporaneidade: ele mostra que há perda daquela experiência estética antiga, que tratava de produzir um objeto único que teria uma repercussão universal no sujeito, que ainda estaria ligada à experiência religiosa.

FOLHA - Assim, se desenvolveriam padrões de beleza na arte, como hoje falamos em padrões de beleza na moda?
KATZ - Quando se produz um novo modo de sensibilidade, cria-se um padrão. Os utensílios, o ambiente, o modo de vestir começam a se produzir com um novo modelo.

FOLHA - O padrão de beleza é, portanto, mutável...
KATZ - Essa idéia da mutabilidade é de Gabriel Tarde [sociólogo francês, 1843-1904]: as relações é que produzem o objeto. O sociólogo francês Gilles Lipovetsky mostra que a moda das classes mais possuídas termina por permear todos os grupos sociais e passa a ser um modelo para a reprodução e a feitura de novos padrões.E com isso entra a questão do corpo, desde a idéia da eugenia até o modelo do que deveria ser a vida social.Há quem diga que o modelo de eugenia nasceu com o inglês Francis Galton [1822-1911], o pai dos testes de inteligência. Ele propõe famílias como a dele como modelo.

FOLHA - Há experimentos em que são apresentadas fotografias a voluntários, e, segundo os resultados, rostos mais simétricos são considerados mais bonitos. Que pensa dessa definição de beleza?
KATZ - Para mim, essa história passa por algo que os alemães, desde 1870, aproximadamente, quiseram impor como um padrão de beleza. Tinham uma ciência, a fisiognomonia, em que o sujeito era lido, perfilado, pelo modo de ser do rosto, das posturas corporais, da cor da pele etc. Se a ciência tem experiências que mostram essa percepção da beleza, eu me resguardo para poder pensar que a beleza é uma conquista, e não um dado genético. Ela se conquista dentro de um grupo social; há inúmeras batalhas para impor padrões.

FOLHA - E a juventude? Hoje, as pessoas querem parecer mais jovens, e no limite a aparência pueril é um ideal. O sr. lembra, em "Beleza, Feiúra e Psicanálise", que Erasmo iguala velhos e crianças como fora do padrão comum...
KATZ - Mas a criança hoje é a chamada "criança sábia", que aos dois anos de idade já escreve ao computador. Há uma mimetização das roupas infantis, da comida infantil.É uma tendência, mas ser tendência não quer dizer que se trate de um objeto único. Há outras tendências, como a internet. Quando pessoas se conhecem pela internet, a beleza aparece na escrita, no modo de se expressar. Temos casos, em consultório, de namoros em que as pessoas, quando chegam a se ver, ficam muito decepcionadas.

FOLHA - Em que direção atua a construção midiática da beleza?
KATZ - Sou um pouco pessimista. Atua num sentido de restrição porque exige do "eu" do sujeito que se recomponha permanentemente.Mas também aprendi que as modas vão se fazendo e precisam ampliar seu alcance, seu mercado e, com isso, também conservam padrões. Obrigam o sujeito a se refazer e a ter uma imagem de si sempre voltada para si -mas ele nunca se conhece direito. É sempre uma luta muito difícil com o que deve ser o corpo para corresponder a um padrão.

FOLHA - Que elementos são usados para construir o padrão?
KATZ - Tem que haver algum tipo de homogeneidade nos interesses partilhados entre produtores e consumidores. Não dá para marcar esses interesses apenas psicologicamente -essa subjetividade é produzida. Os marqueteiros sabem produzir o consumo mas também respondem ao desejo que produzem.

FOLHA - A publicidade e o cinema tendem mais a promover a mutabilidade e pluralidade do belo ou tentam congelar o padrão?
KATZ - Não consigo encontrar na contemporaneidade uma forma de escapar aos modelos de beleza. São 20 ou 30 mulheres e homens que representam toda a beleza subsumível numa figura. Essa é uma construção que leva tempo. Falar em beleza média é uma coisa ilusória.

FOLHA - Que pensa das campanhas voltadas às "mulheres comuns"? Acha que é hipocrisia?
KATZ - É uma produção, como quando se pega o cabelo das brasileiras para alisar, que é uma produção que vende e que caminha em direção a um padrão dolicocéfalo. Quando um marqueteiro abre esse campo, abre o campo do consumo. Com isso há a degradação de um padrão e o realce de outro, digamos, disso que você chamou "pessoa comum".

FOLHA - Acha que isso representa uma corrente tentando induzir uma beleza politicamente correta?
KATZ - Acho que sim. É na Dove que isso aparece. Nas novelas, padrões são louvados e depois desaparecem. São permanentemente substituíveis.

FOLHA - E quando a mídia diz para a mulher se sentir bela como é? As mulheres vão ficar satisfeitas?
KATZ - A conquista da beleza é infinita. As mulheres não vão ficar satisfeitas nem os homens. É isso que produz a beleza: o movimento incessante na busca de uma perfeição que não é nem definida.

FOLHA - A beleza é hoje a grande moeda de troca para o indivíduo contemporâneo?
KATZ - Não diria isso. É uma grande moeda de troca, mas continuo achando que as relações de poder ainda são a grande moeda. Mas fui tirar uma fotografia para passaporte e me perguntaram se não queria pagar mais para apagar marcas do meu pescoço na foto!

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